A Constituição Federal não pode ser um barco cujas velas se ajustam com qualquer soprar de ventos. Sua direção é uma só: a democracia.
Por que não devemos nos debruçar sobre o artigo 142 para justificar um golpe constitucional? Respondo que, primeiramente, “golpe constitucional” é uma contradição em si. Após a Constituição de 1988 e a redemocratização da república, temos uma Carta analítica e com garantias fundamentais muito valiosas.
A repercussão do artigo 142 como uma possível brecha para um golpe ganhou espaço após o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, dar uma entrevista ao jornal O Globo afirmando que poderia haver o que ele chamou de “autogolpe” do presidente com o apoio das Forças Armadas.
Precisamos de cautela. A interpretação do Direito deve ser feita com muito zelo e técnica. Existem limites interpretativos para tal – a Constituição Federal não pode ser interpretada para extrair apenas o que queremos dela. Não há que se descartar um constrangimento da interpretação para que não acabemos fazendo como os nazistas fizeram com as leis de Nuremberg – subvertendo o sistema jurídico e se valendo dele como instrumento para atingir os objetivos de Hitler.
“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
O jurista Ives Gandra se manifestou sobre o tema, endossando o que Mourão havia dito. Como se as forças armadas pudessem intervir para restaurar a ordem democrática. Se assim fosse, como escreveu o professor Lenio Streck – a democracia estaria em risco cada vez, proferida uma decisão pelo STF, ela viesse a desagradar os demais poderes, bastando sua desobediência. É uma interpretação muito perigosa, pois, sendo assim, a democracia dependeria dos militares e não do poder civil.
De nada faria sentido termos uma Constituição que enuncia “todo poder emana do povo” e, em um de seus artigos, preconizar que as Forças Armadas podem intervir como um “poder moderador” (mesmo porque as FA não são um Poder). A vontade do legislador, ao redigir o artigo 142, foi de afirmarmos que as Forças Armadas, como exceção de sua missão, podem ser usadas também para garantir internamente a segurança pública. E, além disso, estabeleceu-se uma série de requisitos para tanto (artigos 34, III, 136 e 137 da CF), elementos estes que não estão presentes no cenário atual. Nada há de autorização para golpe ou autogolpe. Simples assim. Novamente, como escreveu o professor Lenio Streck: Basta ler, com boa vontade, os dispositivos. E eu, continuo bradando, a duras penas: a Constituição Federal não pode ser sempre aquilo que queiramos que ela seja.